COMO O FADO COMEÇOU A SER CANTADO Á MÉDIA-LUZ
Alfredo Marceneiro e as luzes no Fado
Alfredo Marceneiro foi o responsável por, a partir de determinada altura, os fadistas passarem a cantar o fado à média luz. Na iluminação da altura (anos vinte) era usado o acetileno que não permitia a diminuição progressiva da luz, razão pela qual ele sugeriu a ideia de acender umas velas para se cantar o Fado.
Eis pois o episódio que Alfredo frequentemente recordava:
"Todos os anos, para celebrar a abertura da água-pé, o Rogério Estivador organizava na sua Quinta da Paiã, uma grande e regada patuscada, com a festança a terminar invarialvelmente com uma sessão de fados sendo os fadistas convidados pelo Chico Carreira. Rogério Estivador, que não era grande apreciador de fado, comentava sempre que para ele os fadistas cantavam todos da mesma maneira. Então o Chico Carreira, perguntou-lhe se já ouvira cantar o Alfredo Marceneiro. O Rogério disse-lhe que não e que nem sequer estava interessado, tendo o Chico ripostado:
— Hoje veio comigo o tal Marceneiro e podes crer que quando o ouvires, hão-de chegar-te chegar -te as lágrimas aos olhos.
O Rogério largou uma gargalhada. Ele chorar por causa de um fadista? Ora, o Chico não estava bom da cabeça.
Quando terminou a patuscada, já noite alta, os fadistas começaram a cantar e quando chegou a vez do Alfredo Marceneiro, este, que não estava muito inspirado, cantou um fado qualquer, pouco propício a fazer chorar fosse quem fosse.
O Rogério zombou, dirigindo-se ao Chico Carreira:
— Então este é que é o tal que me ia fazer chorar?
Chico Carreira foi ter com o Alfredo e contou-lhe tudo. Alfredo encheu-se de brios, levantou-se e dirigindo-se aos comensais disse:
— Vou cantar, dedicando ao dono da casa, Senhor Rogério, mais um fado. A letra que vou cantar é da autoria do grande poeta popular Henrique Rêgo e tem como tema o sentimento que mais prezo: O Amor de Mãe. Peço a todos o máximo silêncio e agradecia que as luzes fossem apagadas:
— As luzes? — perguntou o dono da casa — Então ficamos ás escuras?
— Não — disse Marceneiro — Agradecia que mandasse vir umas velas e que as espetassem em gargalos de garrafas.
Assim se fez. A iluminação, a acetileno, foi substituída pela luz trémula e difusa das velas e, no meio do maior silêncio, Alfredo Marceneiro entoou, com sentimento profundo, os primeiros versos do fado:
"Ó ÁGUIA!"
Se para ser Homem, Jesus
Precisou que uma Mulher
O desse á Luz neste Mundo
O Amor de Mãe é a Luz
Que torna o nosso viver
Num Hino de Amor Profundo
E prosseguiu sempre no mesmo tom dolente a cantar este lindo poema de Henrique Rêgo com música do Fado Bacalhau:
Ó águia que vais tão alta
Num voar vertiginoso
Por essas serras d´além
Leva-me ao céu, onde tenho
A estrela da minha vida
A alma da minha mãe
Loucos sonhos juvenis
Fervilham na minha mente
Que me fazem ficar chorando
Quando tu águia imponente
Te vejo tranpor voando
As serras e os alcantis
Quando te vejo voar
Pelo vasto firmamento
Sobre as campinas desertas
Com profundo sentimento
Tu em meu peito despertas
Sonhos que fazem chorar
Ó velha águia altaneira
Vem aliviar-me, vem
Do mal que me vem o ferir
Vê se ao céu, me transportas
Para de beijos cobrir
A alma de minha mãe
Quando Alfredo acabou o fado, Rogério Estivador não resistiu: grossas lágrimas lhe correram cara abaixo, tendo num impulso irresistível correr a abraçá-lo.
— Muito bem amigo Alfredo, isto é que é cantar com sentimento, isto é que é Fado."
E foi assim que naquela noite Alfredo Marceneiro deu início à tradição de diminuir as luzes quando se canta o Fado.
© Vítor Duarte Marceneiro